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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Salão dos Artistas Sem Galeria - 8ª edição

O Salão dos Artistas Sem Galeria, promovido pelo Mapa das Artes, está em sua 8ª edição, e apresenta o trabalho de dez artistas sem representação comercial nas galerias de arte. A exposição está nas galerias Zipper e Sancovsky, em São Paulo, mas também ocorrerá no Rio de Janeiro, Goiás e Minas Gerais.

São apresentados trabalhos de Lula Ricardi (SP), Maura Grimaldi (SP), Jefferson Lourenço (MG), Marcelo Barros (SP), Gunga Guerra (Moçambique/RJ), Marcelo Pacheco (SP), Luciana Kater (SP), Cesare Pergola (Itália/SP), Juliano Moraes (GO) e Cristiani Papini (MG).

Os artistas foram escolhidos pelo júri formado por Adriana Duarte, (galeriasta da Casa da Xiclet), Paula Alzugaray (jornalista da revista Select) e Rodrigo Editore (galerista da Casa Triângulo).


“Briga de Galo” de Gunga Guerra
Todo o processo é financiado pelos próprios artistas através da taxa de inscrição 140 reais paga pelos candidatos a participar do salão. Não conta com nenhuma lei de incentivo, dinheiro público ou patrocinador. A partir da seleção, eles passam a receber apoio do salão para a divulgação do seu trabalho, catalogação, documentação e comercialização da obra de arte.

A 8ª edição do Salão recebeu 194 inscrições. Os dez selecionados receberão 600 reais cada, para despesas como envio e retirada de suas obras em São Paulo e dois dos artista que mais se destacarem  receberão prêmios nos valores de 1000 e 1500 reais.


De 12/01/17 a 04/03/17
Galeria Sancovsky – São Paulo (SP)
Praça Benedito Calixto, 103, Pinheiros
(11) 3086-0784
Ter. a sex., 10h às 19h; sáb., 10h às 17h
www.galeriasancovsky.com.br

De 17/01/17 a 04/03/17
ZIPPER GALERIA – São Paulo (SP)
Rua Estados Unidos, 1.494, Jardim América
(11) 4306-4306
Seg. à sex., 10h às 19h; sáb., 11h às 17h
www.zippergaleria.com.br

Belo Horizonte (Galeria Orlando Lemos, entre 11/3/17 e 22/4/17)

Goiânia (Potrich Arte Contemporânea; de 6/5/17 a 3/6/17)

Rio de Janeiro (Galeria Patricia Costa, junho e julho de 2017)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

As relações humanas, sociais e afetivas, estão doentes no início do século XXI.

Introdução

Uma das pessoas mais perítas para tratar de estudos da realidade comtemporânea é Zygmunt Bauman.

Bauman é um sociólogo polonês, que Serviu na Segunda Guerra Mundial pelo exército da União Soviética. Graduou-se em sociologia na URSS, iniciou sua carreira na Universidade de Varsóvia, de onde foi afastado em 1968, após ter vários livros e artigos censurados.

Emigrou então da Polônia, por motivo de perseguições antissemitas, e na Grã-Bretanha

tornou-se professor titular da Universidade de Leeds (1971 em diante). Recebeu os prêmios Amalfi (1989, por sua obra Modernidade e Holocausto) e Adorno (1998, pelo conjunto de sua obra). É atualmente professor emérito de sociologia das universidades de Leeds e Varsóvia.

Em sua concepção sociológica argumenta sobre o comportamento a que chegou o homem contemporâneo, devido ao molde imposto pelo sistema vigente, e traça diretrizes futuras para o que pode acontecer com a civilização no futuro.

Ao fazer uma análise dos costumes de nossa época, os define pelo que chama de liquidez da era contemporânea. Pois a sociedade avança em vários sentidos, porém, são questionáveis suas atitudes e o seu contexto enquanto sociedade. A liquidez, a qual Bauman propõe vem do fato que os líquidos não têm uma forma, ou seja, são fluídos que se moldam conforme o recipiente nos quais estão contidos, movem-se facilmente, simplesmente “fluem”, “escorrem entre os dedos”.

Ao contrário da sociedade rídida e sólida de outrora, hoje tudo é líquido. Fala-se de ''Tempos Líquidos”, ''A Modernidade Líquida'', ''Amor Líquido”...

Um dos mais intrigantes aspectos da sociedade atual, manipulada pelas forças maior de poder do Estado, e do sistema econômico, são como acabaram ficando as relações humanas. Então por este motivo, falaremos de uma de suas obras, ''Amor Líquido'', que trata especificamente deste assunto.

De acordo com Bauman, cada vez mais a sociedade em geral, tem menos contatos entre os indivíduos e que duram menos. Devido às relações líquidas descritas por Bauman em livros como Amor Líquido, em que as relações amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser mero acúmulo de experiências, e a insegurança é parte estrutural da constituição do sujeito pós-moderno.

Bauman é descrito frequentemente como pessimista, mas sua intenção é seguir a contracorrente: se há cientistas, poetas e artistas espalhando diversas virtudes do capitalismo, por que não expôr exatamente o contrário, sua face desumana?

Amor Líquido



Zygmunt Bauman, investiga aqui de que forma nossas relações tornam-se cada vez mais "flexíveis", gerando níveis de insegurança sempre maiores. Uma vez que damos prioridade a relacionamentos em "redes", as quais podem ser tecidas ou desmanchadas com igual facilidade — e freqüentemente sem que isso envolva nenhum contato além do virtual —, não sabemos mais manter laços a longo prazo.

Não apenas relações amorosas e vínculos familiares são afetados: Bauman verifica ainda que nossa capacidade de tratar um estranho com humanidade é prejudicada. Como exemplo, ele examina a crise na atual política imigratória de diversos países da União Européia e a forma como a sociedade tende a creditar seus medos, sempre crescentes, a estrangeiros e refugiados.

Uma das mais simples definições do amor, é a que Balman faz aqui, dizendo que o amor, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que "está lá fora". 

Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da alteridade.

O amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo, ou a — ciumentamente — guardar, cercar, encarcerar. Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultando em exaltação. O amor é irmão xifópago da sede de poder —nenhum dos dois sobreviveria à separação.

Que é diferente do desejo...

''Desejo é vontade de consumir. Absorver, devorar, ingerir e digerir — aniquilar. O desejo não precisa ser instigado por nada mais do que a presença da alteridade.'' - Bauman

Em uma análise sobre estas emoções que são inerentes do instinto humano, Balman claramente demonstra qual a forma que o sistema obviamente explora isso, fazendo com que os administradores de shopping centers planejem que as decisões de compra sejam tomadas por motivos não nascidos e amadurecidos ao acaso, aos consumidores, e nem deixam seu cultivo em suas mãos leigas. 

Todos os motivos necessários para fazê-los comprar devem nascer instantaneamente, enquanto passeiam pelo shopping.

Nos dias de hoje, os shopping centers tendem a ser planejados tendo-se em mente o súbito despertar e a rápida extinção dos impulsos, e não a incômoda e prolongada criação e maturação dos desejos. O único desejo que pode (e deve) ser implantado por meio da visita a um shopping é o derepetir, vezes e vezes seguidas, o momento estimulante de "abandonar-se aos impulsos" e permitir que estes comandem o espetáculo sem que haja um cenário predefinido.

A curta expectativa de vida é o trunfo dos impulsos, dando-lhes uma vantagem sobre os desejos. Render-se aos impulsos, ao contrário de seguir um desejo, é algo que se sabe ser transitório, mantendo-se a esperança de que não deixará conseqüências duradouras capazes de impedir novos momentos de êxtase prazeroso.

Com a ação por impulso profundamente incutida na conduta cotidiana pelos poderes supremos do mercado de consumo, seguir um desejo é como caminhar constrangido, de modo desastrado e desconfortável, na direção do compromisso amoroso.

Em sua versão ortodoxa, o desejo precisa ser cultivado e preparado, o que envolve cuidados demorados, a árdua barganha com conseqüências inevitáveis, algumas escolhas difíceis e concessões dolorosas. Mas, pior que tudo, impõe que se retarde a satisfação, sem dúvida o sacrifício mais detestado em nosso mundo de velocidade e aceleração.

Guiada pelo impulso ("seus olhos se cruzam na sala lotada"), a parceria segue o padrão do shopping e não exige mais que as habilidades de um consumidor médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve ser consumida instantaneamente (não requer maiores treinamentos nem uma preparação prolongada) e usada uma só vez, "sem preconceito" É, antes de mais nada, eminentemente descartável.

Consideradas defeituosas ou não "plenamente satisfatórias", as mercadorias podem ser trocadas por outras, as quais se espera que agradem mais, mesmo que não haja um serviço de atendimento ao cliente e que a transação não inclua a garantia de devolução do dinheiro. Mas, ainda que cumpram o que delas se espera, não se imagina que permaneçam em uso por muito tempo.

Afinal, automóveis, computadores ou telefones celulares perfeitamente usáveis, em bom estado e em condições de funcionamento satisfatórias são considerados, sem remorso, como um monte de lixo no instante em que "novas e aperfeiçoadas versões" aparecem nas lojas e se tornam o assunto do momento. Alguma razão para que as parcerias sejam consideradas uma exceção à regra?

As promessas de compromisso,são irrelevantes a longo prazo. O compromisso é uma conseqüência aleatória de outras coisas: nosso grau de satisfação com o relacionamento; se nós vemos uma alternativa viável para ele; e se levá-lo adiante nos causaria uma perda importante em matéria de investimentos (tempo, dinheiro, propriedades em comum, filhos).

Bauman compara o relacionamento como um investimento na bolsa de valores: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma, sendo-lhe devolvido — com lucro.

Você compra ações e as mantém enquanto seu valor promete crescer, e as vende prontamente quando os lucros começam a cair ou outras ações acenam com um rendimento maior (o truque é não deixar passar o momento em que isso ocorre).

Se você investe numa relação, o lucro esperado é, em primeiro lugar e acima de tudo, a segurança — em muitos sentidos: a proximidade da mão amiga quando você mais precisa dela, o
socorro na aflição, a companhia na solidão, o apoio para sair de uma dificuldade, o consolo na derrota e o aplauso na vitória; e também a gratificação que nos toma imediatamente quando nos livramos de uma necessidade. Mas esteja alerta: quando se entra num relacionamento, as promessas de compromisso são "irrelevantes a longo prazo".

É claro. Relacionamentos são investimentos como quaisquer outros, mas será que alguma vez lhe ocorreria fazer juras de lealdade às ações que acabou de adquirir? Jurar ser fiel para sempre, nos bons e maus momentos, na riqueza e na pobreza, "até que a morte nos separe"? Nunca olhar para os lados, onde (quem sabe?) prêmios maiores podem estar acenando?

A primeira coisa que os bons acionistas (prestem atenção: os acionistas só detêm as ações, e é possível desfazer-se daquilo que se detém) fazem de manhã é abrir os jornais nas páginas sobre mercado de capitais para saber se é hora de manter suas ações ou desfazer-se delas. É assim também com outro tipo de ações, os relacionamentos.

"Estar num relacionamento" significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz — ou de ter feito a coisa certa ou no momento preciso.

Parece que esse dilema não tem uma boa solução. Pior ainda, que ele está impregnado de um paradoxo do tipo mais desagradável: não apenas a relação falha em termos da necessidade que deve-ria (e esperávamos que pudesse) cumprir, mas torna essa necessidade ainda mais afrontosa e exasperante.

Você busca o relacionamento na expectativa de mitigar a segurança que infestou sua solidão; mas o tratamento só fez expandir os sintomas, e agora você talvez se sinta mais inseguro do que antes, ainda que essa "nova e agravada" insegurança provenha de outras paragens. Se você pensava que os juros de seu investimento em companhia seriam pagos na moeda forte da segurança, parece que sua iniciativa se baseou em falsos pressupostos. Isso significa problemas e nada mais que problemas — mas não todo o problema.

Comprometer-se com um relacionamento, "irrelevante a longo prazo" (fato de que ambos os lados estão cientes!) é uma faca de dois gumes. Faz com que manter ou confiscar o investimento 
seja uma questão de cálculo e decisão. Mas não há motivo para supor que seu parceiro ou parceira não deseje, se for o caso, exercitar uma escolha semelhante, e que não esteja livre para fazê-lo se e quando desejar. Essa consciência aumenta ainda mais sua incerteza — e a parte acrescentada é a mais difícil de suportar. Ao contrário de uma escolha pessoal do tipo "pegar ou largar", não está em seu poder evitar que o parceiro ou parceira prefira sair do negócio.

Por todos os motivos, a visão do relacionamento como uma transação comercial não é a cura para a insônia. Investir no relacionamento é inseguro e tende a continuar sendo, mesmo que você deseje o contrário: é uma dor de cabeça, não um remédio.

Na medida em que os relacionamentos são vistos como investimentos, como garantias de segurança e solução de seus problemas, eles parecem um jogo de cara-ou-coroa. A solidão produz insegurança — mas o relacionamento não parece fazer outra coisa. Numa relação, você pode sentir-se tão inseguro quanto sem ela, ou até pior. Só mudam os nomes que você dá à ansiedade.


''Em São Paulo, a tendência segregacionista e exclusivista se apresenta da forma mais brutal,
inescrupulosa e desavergonhada.'' - Teresa Caldeira

E o sexo? O sexo ainda é muito praticado, porém sem qualquer um dos laços que havia anteriormente.

Do encontro dos sexos nasceu a cultura. Nesse encontro ela praticou pela primeira vez sua arte criativa da diferenciação. Desde então, nunca mais foi suspensa, muito menos abandonada, a
íntima cooperação da cultura e da natureza em tudo que se refere ao sexo. A ars erotica, criação eminentemente cultural, guiou a partir de então o impulso sexual na direção de sua satisfação no convívio humano.

Porém hoje, a sexualidade não condensa mais o potencial de prazer e felicidade. Ela não é mais mistificada positivamente como êxtase e transgressão, mas negativamente, como fonte de opressão, desigualdade, violência, abuso e infecção mortal."É como se Antero, irmão de Eros e "gênio vingativo do amor rejeitado", tivesse tomado de seu irmão o domínio sobre o reino do sexo.

Antero era conhecido por ser altamente passional, excitável, lascivo e exaltado, mas, uma vez transformado em senhor indiscutível do reino, teve de proibir a paixão entre seus súditos e proclamar que o sexo devia ser um ato racional, calculado com sobriedade, realizado considerando todos os riscos e regras e, acima de tudo, totalmente desmistificado e desprovido de ilusão.

Quando a qualidade o decepciona, você procura a salvação na quantidade. Quando a duração não está disponível, é a rapidez da mudança que pode redimi-lo.

Do sexo, seguia-se a procriação. Houve uma época em que os filhos eram produtores, e sua força de trabalho somava-se à força do resto da família.Naquela época, quando a riqueza era derivada do trabalho, a chegada de um filho trazia consigo a expectativa de melhoria do bem-estar da família.

Os filhos podiam ser tratados com dureza, mantidos sob rédea curta, mas esse era um tratamento comum a todos os outros trabalhadores. Não se esperava que o trabalho trouxesse alegria ou causasse prazer ao empregado — a idéia de "satisfação no trabalho' ainda estava para ser inventada. Os filhos eram, na visão de todos, bons investimentos, e como tal eram saudados.

Agora, com a nova fragilidade das estruturas familiares, com a expectativa de vida de muitas famílias sendo mais curta do que a de seus membros, com a participação em determinada linhagem familiar tornando-se rapidamente um dos elementos "indetermináveis" da líquida era moderna e com a adesão a uma das diversas redes de parentesco disponíveis transformando-se, para um
crescente número de indivíduos, numa questão de escolha — e uma escolha, até segunda ordem, revogável —, um filho pode ser ainda "uma ponte" para algo mais duradouro. Mas a margem a que essa ponte conduz está coberta por uma neblina.

Esta é uma época em que um filho é, acima de tudo, um objeto de consumo emocional.

Objetos de consumo servem a necessidades, desejos ou impulsos do consumidor. Assim também os filhos. Eles não são desejados pelas alegrias do prazer paternal ou maternal que se espera que proporcionem — alegrias de uma espécie que nenhum objeto de consumo, por mais engenhoso e sofisticado que seja, pode proporcionar.

Atualmente a medicina compete com o sexo pela responsabilidade da reprodução. A possibilidade fascinante que se encontra bem ali na esquina é a oportunidade de "escolher um filho num catálogo de doadores atraentes quase da mesma forma como eles [os consumidores contemporâneos estão acostumados a comprar pelo correio ou por meio de revistas de moda" — e adquirir a criança escolhida no momento preferido.

Resumindo: a separação entre sexo e reprodução, amplamente observada, tem a anuência do poder. É o produto conjunto do líquido ambiente da vida moderna e do consumismo como estratégia escolhida.

Portanto, Balman conclui que o sexo dá a falsa idéia de união, porque é exatamente o que homens e mulheres procuram ardentemente em seu desespero para escapar da solidão que já sofrem ou temem estar por vir. Mas que no fundo não passa de uma grande ilusão porque a união alcançada no breve instante do clímax orgástico "deixa os estranhos tão distantes um do outro como
estavam antes", de modo que "eles sentem seu estranhamento de maneira ainda mais acentuada".

Nesse papel, o orgasmo sexual "assume uma função que o torna não muito diferente do alcoolismo e do vício em drogas". Tal como estes, ele é intenso — mas "transitório e periódico".

E como se dá a atração e os contatos afetivos nesta era contemporânea? Com o avanço da tecnologia, os equipamentos eletrônicos são utilizados em substituição ao flerte ''ao vivo''. Uma mensagem brilha na tela em busca de outra. Seus dedos estão sempre ocupados: você pressiona as teclas, digitando novos números para responder às chamadas ou compondo suas próprias mensagens.


Você permanece conectado mesmo estando em constante movimento, e ainda que os remetentes ou destinatários invisíveis das mensagens recebidas e enviadas também estejam em
movimento, cada qual seguindo suas próprias trajetórias. Estando com o seu celular, você nunca está fora ou longe, o mundo virtual criou o ''não lugar''.

Encontra-se sempre dentro, mas jamais trancado sozinho em casa. Encasulado numa teia de chamadas e mensagens, você está invulnerável. As pessoas a seu redor não podem rejeitá-lo e, mesmo que tentassem, nada do que realmente importa iria mudar. Não importa onde você está, quem são as pessoas à sua volta e o que você está fazendo nesse lugar onde estão essas pessoas.

Uma mensagem não foi respondida? Também não há motivo para preocupação. Existem muitos outros contatos na lista. Há sempre mais conexões para serem usadas e assim não tem grande importância quantas delas se tenham mostrado frágeis e passíveis de ruptura. Uma multidão de pessoas conectadas: um enxame, para ser mais preciso.

Depois de lermos tudo isso, podemos ficar com uma ideia muito pessimista dos tempos atuais, talvez porque o pessimismo é realista agora, ou vice-versa. É muito triste que a sociedade tenha chegado neste comportamento isento de valores em relação a outro ser humano. Por este motivo finalizaremos estas reflexões com algumas mensagens que Bauman transmitiu para nós nas entrelinhas de seus textos, para que saibamos que embora exista a ''massa do grande fluxo'', também haverá sempre um louco para agir em contrafluxo, como as ovelhas desgarradas do rebanho na obra ''Elogio da Loucura'', de Erasmo de Roterdã.

''O amor, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado.

O amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo.

Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem.
''

Zygmunt Bauman

domingo, 29 de novembro de 2015

Clássicos da Literatura: "O Espelho" - conto de Machado de Assis

Esboço de uma nova teoria da alma humana



Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo. Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e respondeu: - Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos. - Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas... - Duas? - Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior não é sempre a mesma... - Não? - Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, Petrópolis... - Perdão; essa senhora quem é? - Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos... Os quatro companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a narração: - Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo velho, mas bom... - Espelho grande? - Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, creio eu? - Não. - O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não? - Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes. - Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a intenção secreta dos malvados. - Matá-lo? - Antes assim fosse. - Coisa pior? - Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: recordeime daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se? - Sim, parece que tinha um pouco de medo. - Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel. - Mas não comia? - Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada. Tudo silêncio, um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic-tac... - Na verdade, era de enlouquecer. - Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha idéia... - Diga. - Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são capazes de adivinhar. - Mas, diga, diga. - Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar mais seis dias de solidão sem os sentir... Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha descido as escadas.



FIM